O Contexto Ambiental Off-Shore: Interações Sociais
A Psicologia Social (especificamente as subdivisões da Psicologia Social do Ambiente e da Proxêmica) por se interessar pelo modo como cada pessoa interage com a outra e o meio ambiente que as circunda (Rodrigues, 1973; Kendler, 1985), serviu de base teórica para esta pesquisa. Tal investigação dividiu-se em duas etapas: i) a primeira, em que se contextualizou o ambiente off-shore e, ii) a segunda etapa, onde se investigou a influência desse ambiente sobre as pessoas.
Na primeira etapa, em relação à Proxêmica, utilizou-se o conceito de espaço pessoal (Horowitz & Proshansky, 1974; Moles, & Rohmer,1978; Fischer, 1994b) procurando identificar as delimitações espaciais e as relações de intimidade nas interações entre os trabalhadores off-shore. Já através da Psicologia Ambiental, considerou-se as relações de identificação ambiental das pessoas, em especial, a atribuição de posse através da personalização de um dado território (Goffman,1973; Sommer, 1973).
Na segunda etapa da pesquisa, procurou-se entender como os trabalhadores são influenciados pelo ambiente que os cerca tendo como referenciais:
O Stress: investigou-se os sinais indicadores de stress (Selye, 1965; Rodrigues, 1997) partindo-se da premissa de que na plataforma, uma vez que não se privilegia a fuga social, os sintomas de stress ocupacional podem ser agravados, além do fato de pesquisas atuais indicarem que os trabalhadores off-shore estão mais sujeitos ao stress do que as populações que trabalham em terra (Parkes, 1998; Joel, 1999).
O Sono: priorizou-se as características do sono do trabalhador embarcado, tendo em vista as perturbações dos ritmos biológicos ocasionadas pelos sistemas de trabalho em turnos (Kogi, 1981; Cippola-Neto, Menna-Barreto, Marques, Afeche & Silva, 1996; Velluti,1996; Rutenfranz, Kanuth, & Fisher, 1996; Garay, 1996).
As Emoções: levando em consideração a fusão entre os ambientes públicos (trabalho) e privados (lazer e repouso), objetivou-se investigar quais e como são vivenciadas as emoções entre os trabalhadores off-shore (Morales, 1994; Ashforth & Humphrey, 1995).
Método
Optou-se pelo o método qualitativo por possibilitar uma maior problematização e contextualização do ambiente de trabalho off-shore (Selltiz, Jahoda, Deutch & Cook, 1974). No âmbito da abordagem qualitativa e hermenêutica, o método escolhido foi o de estudo de caso (Ludke & André, 1986; Trivinos, 1987; Haguette, 1997).
Participantes
No total, participaram da pesquisa 79 pessoas, entre contratados e petroleiros.
Instrumentos e Técnicas
Os aspectos físicos e psicológicos do ambiente de trabalho off-shore foram investigados através da técnica de observação participante. As influências do ambiente nas pessoas foram exploradas por entrevistas semi-estruturadas com os trabalhadores. Interpretou-se as entrevistas através da análise do conteúdo do material transcrito, mais especificamente as técnicas temática e estrutural (Bardin, 1970).
Discussão
A seguir serão discutidos os resultados obtidos tanto por meio das observações, quanto através das entrevistas com os trabalhadores embarcados.
Observação Participante: Os trabalhadores consideraram que o fato de dividir o espaço de trabalho, lazer e de repouso com as mesmas pessoas fez com que as relações diárias se tornassem monótonas e cansativas mas, ainda assim, preferiam a situação pouco confortável de conviver durante todo o período de embarque com os mesmos companheiros que dividir o espaço com um estranho, o que poderia ser visto como uma invasão do espaço privativo. Não se detectou lugares demarcados nos ambientes de trabalho da plataforma, isso, devido à transitoridade dos trabalhadores. Notou-se que a intimidade não está ligada a um espaço determinado; qualquer espaço de trabalho pertence a todos e o fato de alguém ocupar um lugar num determinado momento não lhe confere nenhum direito de posse.
Os espaços observados foram:
Alojamentos: os alojamentos ocupam dois níveis na plataforma: o segundo e o terceiro pisos. O segundo piso é destinado aos contratados. Os ocupantes desse piso, possuem primeiro grau completo, em alguns casos o segundo. O terceiro piso é formado por suítes destinadas aos petroleiros. Seus ocupantes possuem o segundo grau completo ou curso superior. Há um distanciamento visível entre os contratados e os petroleiros, devido a crenças compartilhadas entre os primeiros de que a aproximação com os funcionários da Petrobrás gera uma imagem pessoal negativa diante dos colegas. Por sua vez, os petroleiros reforçam esse distanciamento através de estereótipos negativos que formam em relação aos contratados. Existe pouca privacidade nos alojamentos. Os alojados do segundo piso, disseram não se incomodar muito com a questão da falta de privacidade, diferentemente dos alojados do terceiro piso, que possuem camarotes mais privativos, banheiros individuais e onde justamente as reclamações de falta de privacidade são maiores. Assim, quanto mais baixo o nível de escolaridade e de hierarquia encontrados, menor era o espaço físico disponível e maior era a indiferença em relação a essa situação para a pessoa. Quanto mais elevada a escolaridade e a hierarquia organizacional, entretanto, maior era o espaço disponível e maior era a sensação subjetiva de invasão espacial.
Lazer: existem poucas atividades coletivas de lazer envolvendo os embarcados. Se nas relações de trabalho a proximidade entre os dois grupos é inevitável e imposta, na prática de esportes, onde o contato físico é iminente, ela é evitada a todo custo. A presença nos ambientes de lazer é permitida apenas em roupas civis, sendo o ingresso com roupas de trabalho, vedado. Essa determinação pareceu ser uma forma indireta de controle das pessoas em seus diferentes espaços. A diferenciação, pessoa-em-trabalho e pessoa-em-folga nas atividades de trabalho em terra se faz pela mudança espacial. Na plataforma, os locais de trabalho e lazer coexistem em um mesmo espaço. A identificação, nesse caso, se dá pela roupa, ou mais precisamente, pela ausência do uniforme que de imediato sugere que determinada pessoa está de folga naquele exato momento. Assim, os trabalhadores de folga são facilmente identificáveis pelos supervisores e colegas.
Serviços de Apoio: para o técnico de enfermagem, os acidentes no trabalho já foram mais freqüentes, mas nos últimos três anos essa média diminuiu muito. Conforme foi informado, atualmente a média de acidentes é maior entre contratados do que petroleiros, talvez devido à política de terceirização da Petrobrás, onde grande parte das atividades sujeitas a maiores riscos ficam ao encargo dos contratados. No refeitório, durante os horários das refeições, notou-se que havia um movimento dos petroleiros em ocupar as mesas menores, mais reservadas e distantes dos funcionários contratados, configurando, também no refeitório, um certo distanciamento social. Com relação aos telefones, existem na plataforma quatro linhas telefônicas, sendo uma para uso interno e três cabines de telefone para uso dos trabalhadores. O pequeno número de cabines e o curto tempo permitido para as ligações (máximo de 10 minutos por pessoa) foram as maiores reclamações dos trabalhadores, tanto contratadosquanto petroleiros. Nos camarotes do terceiro piso, onde ficavam alojadas pessoas que ocupam cargos de chefia, existem linhas privativas nos quartos, intermediadas porém, pela sala de rádio.
Entrevistas: As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com pessoas indicadas pelos próprios trabalhadores e que se encontravam disponíveis.
O Treinamento Off-shore: todo o treinamento relatado esteve voltado para segurança no trabalho e o aprendizado de técnicas operacionais. Em relação ao apoio dos colegas nas situações problemáticas, notou-se que este não é tão efetivo, já que se tomou conhecimento de que na plataforma as pessoas são impedidas implicitamente de demonstrar sinais que denotem emoções como, por exemplo, tristeza, saudade e solidão, pois são considerados indícios de desadaptação à vida do trabalhador off-shore. Acredita-se que o treinamento onde apenas os aspectos técnicos de segurança são priorizados reforce essa conduta, uma vez que transmite às pessoas procedimentos coletivos de trabalho e sobrevivência, criando uma sensação de extrema responsabilidade, incompatível com os estados internos que denotam insegurança pessoal.
Os Indícios de Stress: para os entrevistados, o aumento da ansiedade foi relacionado ao distanciamento da família, à permanência na plataforma, ao isolamento e confinamento e à questões pendentes no trabalho, que seriam motivos de preocupação. Grande parte das pessoas disse que a vertigem devido à altura da plataforma é inadmissível no trabalho off-shore, em virtude do próprio trabalho exigir a execução de atividades em lugares altos. Parece que as pessoas tentam, por meio de mecanismos de defesa subjetivos, esquivar-se do medo e da sensação de vertigem através de substitutos, tais como a figura simbólica do homem poderoso cujos desafios são bem vindos e estimulados, e a insegurança e a dúvida são inibidos (Dejours,1997). A maioria dos entrevistados afirmou que a motivação para o trabalho diminuiu, principalmente, por não receberem elogios ou críticas por parte dos superiores, no trabalho que desempenham. Notou-se que essa ausência de feedback traz uma sensação de vazio para os trabalhadores, o que em alguns casos resultou em uma falta de identidade e de comprometimento com o trabalho (Jacques, 1998).
A Qualidade do Sono na Plataforma e Interações Sociais nos Camarotes: verificou-se que as circunstâncias em que os trabalhadores ocupavam um camarote estava relacionada ao status na organização: quanto mais alto o posto de trabalho, maior a probabilidade de ocupar uma suíte no terceiro piso, sem a companhia de outro trabalhador. Nos camarotes com dois trabalhadores ou mais, a diferença dos turnos de trabalho foi apontada por unanimidade entre os trabalhadores como gerador de complicações na convivência diária. Por último, o trabalho em turnos alternados ocasionou, na população em geral, uma impossibilidade de estabelecer hábitos tanto no trabalho quanto no alojamento (Reimão, 1996). Essa incapacidade de estabelecer hábitos como, por exemplo, horários regulares para dormir, rituais pré-sono, entre outros, parece ter repercutido negativamente na qualidade do sono.
As Emoções no Ambiente de Trabalho: a saudade e a solidão foram os principais sentimentos vivenciados pelos trabalhadores, apesar de as pessoas reprimirem essas emoções por temerem a reprovação alheia. Isso, principalmente sob dois aspectos, primeiro pelo fato de representarem um risco ao próprio emprego, já que existe a crença de que essas emoções são incompatíveis com o trabalho off-shore e, segundo, devido a uma questão cultural: pelo fato de a população ser em quase sua totalidade masculina, os trabalhadores evitam tocar nesse assunto, ou demonstrar sentimentos, já que homem não chora, portanto, não sente. A cooperação pareceu ser ambivalente entre os trabalhadores: todos consideraram a cooperação primordial para o bom funcionamento da plataforma e para a sobrevivência das pessoas, porém, afirmaram não existir cooperação na plataforma, uma vez que os visíveis sinais de diferença social, individualismo, vaidade e extrema competitividade frustam a cooperação e o sentimento de coleguismo no trabalho. No tocante à valorização, as pessoas apresentaram uma tendência a supervalorizar e enaltecer o trabalho off-shore em relação a outros tipos de trabalho, pelo fato de este envolver maiores sacrifícios pessoais, o que justificaria ainda mais a necessidade de o trabalhador ser notado e reconhecido. Pode-se dizer daí que os trabalhadores parecem conviver com uma carência afetivo-profissional constante, típica na plataforma.
Principais Dificuldades do Trabalho Off-shore: a maior dificuldade apontada pelos entrevistados foi o isolamento pessoal da plataforma e a distância da família, somados à ausência de um convívio social externo. Outro grande problema foi o transporte marítimo, cansativo e estressante, mais usado por contratados(petroleiros usam helicóptero). As diferenças salariais também foram citadas como dificuldade do trabalho off-shore, diferenças essas que tem por critério a categoria de contratado e petroleiro. Nesse caso, os contratadosdisseram que recebem salários menores que os petroleiros, e esse fato se manifestou como um agravante do distanciamento social entre os trabalhadores das duas categorias distintas.
Conclusões
A fusão entre os espaços privados e públicos, encontrada na Plataforma pesquisada, foi sentida como invasiva para as pessoas, ao disporem de pouco espaço íntimo. Essa fusão também interferiu nas situações de trabalho fazendo com que o ambiente da plataforma fosse avaliado negativamente pelos trabalhadores. Observou-se que a avaliação de invasão do espaço pessoal pelos trabalhadores foi diferenciada para petroleiros e contratados. Assim, os petroleiros se sentiram mais invadidos em sua intimidade, com menos privacidade nos camarotes, ao mesmo tempo que não se viam com autonomia em seu trabalho. Concluiu-se, contudo, que são justamente ospetroleiros os possuidores de maiores espaços nos alojamentos. Os contratados, que por sua vez ocupavam posições mais inferiores na organização, sentiram-se menos invadidos em seu espaço pessoal e não demonstraram tanta preocupação com a questão da privacidade. Aqui, constatou-se que a premissa de Fischer (1994) tem fundamento, uma vez que quanto mais se está no alto da hierarquia organizacional, mais a pessoa reivindica para si um espaço maior, compatível com o status de sua posição.
Observou-se na plataforma que os petroleiros avaliam negativamente os contratados. Essa avaliação foi reforçada: i) pelo argumento de que a Petrobrás é uma companhia estatal e os petroleiros ingressam via concurso, enquanto os contratados estão subordinados a empresas privadas, com salários menores, ocupando cargos mais baixos; ii) pela diferença entre os alojamentos, mais privativos e com mais espaço para ospetroleiros; e, iii) pelo transporte, quase sempre marítimo para os contratados e aéreo para os petroleiros.
Enfim, as crenças acerca dos grupos isolam as categorias de petroleiros e contratados, contribuindo para o agravamento dos problemas já enfrentados pelos trabalhadores off-shore em plataformas petrolíferas, onde o constante risco de acidentes fatais demanda confiança e solidariedade para garantir a sobrevivência de todos. Não se deve deixar de considerar também o fato de que, por trás da máquina sempre existe o homem. Se esse homem que trabalha percebe seu ambiente como hostil, estressante e opressor, a máquina pode vir a falhar, e, levando em consideração a especiicidade do trabalho com o petróleo e a dimensão da Companhia Petrobras em território nacional, uma pequena falha pode causar danos imensos ao meio ambiente, onerando toda a sociedade.
Por último, espera-se que esta pesquisa possa, de alguma forma chamar a atenção para as pessoas que trabalham em plataformas, confinadas, distantes de suas famílias e impedidas de sair do ambiente por meio mês, e também possa contribuir para futuros trabalhos que visem a melhorar um pouco a qualidade de vida dos trabalhadores off-shore brasileiros.
Fonte:Anderson Córdova Pena*
Centro de Ensino e Treinamento Aplicado a Profissionais - CETAP